Um Espírito Que Não se Acredita Morto

        Um dos nossos assinantes do departamento do Loiret,   excelente médium escrevente, escreve-nos o que se segue, a respeito de várias aparições que testemunhou:
        “Não querendo deixar no esquecimento nenhum dos fatos que vêm apoiar a Doutrina Espírita, venho comunicar os novos fenômenos de que sou testemunha e médium e que, como haveis de reconhecer, concordam perfeitamente com tudo quanto tendes publicado em vossa Revista, a propósito dos diversos estados do Espírito depois que se separa do corpo.
        “Há cerca de seis meses eu me ocupava de comunicações espíritas com várias pessoas, quando me veio a ideia de perguntar se, entre os assistentes, havia um médium vidente. O Espírito respondeu afirmativamente, designou-me e acrescentou: “Tu já o és, mas em pequeno grau e somente durante o sono; mais tarde teu temperamento se modificará de tal maneira que te tornarás um excelente médium vidente, mas pouco a pouco e, a princípio, apenas durante o sono.”
        “No decorrer deste ano experimentamos a dor de perder três de nossos parentes. Um deles, que era meu tio, apareceu-me em sonho algum tempo depois de sua morte; tivemos uma longa conversa e ele me conduziu ao lugar que habita, dizendo-me que era o último grau que conduzia à mansão da felicidade eterna. Era minha intenção dar-vos a descrição daquilo que admirei nessa morada incomparável, mas tendo consultado a respeito o meu Espírito familiar, respondeu-me ele: “A alegria e a felicidade que experimentaste poderiam influenciar a descrição das maravilhosas belezas que admiraste e tua imaginação poderia criar coisas inexistentes. Espera que teu Espírito esteja mais calmo.” Detenho-me, então, em obediência ao meu guia, ocupando-me apenas de duas outras visões mais positivas. Relatarei somente as últimas palavras de meu tio. Após haver admirado aquilo que me era permitido ver, ele me disse: “Agora vais retornar à Terra.” Supliquei-lhe que me concedesse mais alguns instantes e ele respondeu: “Não; são cinco horas e deves retomar o curso de tua existência.” No mesmo instante despertei, ao som da batida de cinco horas do meu relógio.
        “Minha segunda visão foi a de um dos dois outros parentes mortos durante o ano. Tratava-se de um homem virtuoso, amável, bom pai de família, bom cristão e, embora doente desde muito tempo, morreu quase subitamente e talvez no momento em que menos esperava. Seu semblante tinha uma expressão indefinível, séria, triste e, ao mesmo tempo, feliz. Disse-me: “Expio minhas faltas; tenho, porém, um consolo: o de ser o protetor de minha família. Continuo a viver junto à minha mulher e meus filhos e lhes inspiro bons pensamentos. Orai por mim.”
        “A terceira visão é mais característica e me foi confirmada por um fato material: é a do terceiro parente. Era um homem excelente, posto que vivaz, encolerizado, imperioso com os criados e, acima de tudo, apegado desmedidamente aos bens deste mundo. Além de céptico, ocupava-se desta vida mais do que da vida futura. Algum tempo depois de sua morte veio à noite e se pôs a sacudir as cortinas com impaciência, como para me despertar. Como lhe perguntasse se era realmente ele, respondeu-me: “Sim; vim procurar-te porque és a única pessoa que pode responder-me. Minha esposa e meu filho partiram para Orléans; quis acompanhá-los, mas ninguém quer obedecer-me. Disse a Pedro que fizesse minhas malas, mas ele não me escuta. Ninguém me dá atenção. Se pudesses vir atrelar os cavalos na outra carruagem e providenciar a minha equipagem, prestar-me-ias um grande serviço, pois eu poderia ir reunir-me à minha esposa em Orléans.” — Mas não podes fazê-lo tu mesmo? — “Não. Não consigo levantar nada. Depois do sono que experimentei durante a doença, estou completamente mudado; não sei mais onde me encontro. Tenho pesadelos.” — De onde vens? — “De B…” — Do castelo? — “Não!”, respondeu-me com um grito de horror, levando a mão à fronte; “venho do cemitério!” — Após um gesto de desespero, acrescentou: — “Olha, meu caro amigo, dize a todos os meus parentes que orem por mim, porque sou muito infeliz.” — A estas palavras fugiu e o perdi de vista. Quando veio me procurar e sacudir as cortinas com impaciência, seu rosto exprimia terrível alucinação. Ao lhe perguntar como foi capaz de sacudir as cortinas, logo ele que me dizia nada poder levantar, respondeu-me bruscamente: “Com meu sopro!”
        “No dia seguinte fiquei sabendo que sua viúva e seu filho haviam realmente partido para Orléans.”
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        Esta última aparição é notável, pela ilusão que leva certos Espíritos a se crerem ainda vivos e, sobretudo, porque no presente caso essa ilusão prolongou-se por muito mais tempo do que em casos análogos. Muito comumente ela não dura senão alguns dias, ao passo que ele não se julgava morto apesar de já decorridos mais de três meses de seu trespasse. Aliás, a situação é perfeitamente idêntica à que observamos muitas vezes. Ele vê tudo como se estivera vivo; quer falar e se surpreende por não ser ouvido. Ocupa-se ou julga ocupar-se com suas tarefas habituais. A existência do perispírito é aqui demonstrada de maneira admirável, abstração feita da visão. Desde que se vê vivo, é que vê um corpo semelhante ao que deixou; esse corpo age como teria agido o outro; para ele nada parece ter mudado: apenas ainda não estudou as propriedades de seu novo corpo. Julga-o denso e material como o primeiro, e espanta-se, porque nada pode levantar. Entretanto, em sua situação percebe algo de estranho, que não compreende. Supõe-se dominado por um pesadelo; toma a morte por um sono: é um estado misto entre a vida corporal e a vida espírita, estado sempre penoso e cheio de ansiedade, e que tem um pouco de ambas as vidas. Como já dissemos alhures, é o que ocorre de modo mais ou menos constante nas mortes instantâneas, tais como as que se dão por suicídio, apoplexia, suplício, combate, etc.
        Sabemos que a separação entre o corpo e o perispírito se opera gradualmente e não de modo brusco; começa antes da morte, quando esta sobrevém pela extinção natural das forças vitais, seja pela idade, seja pela doença, sobretudo nas pessoas que em vida pressentem seu fim e em pensamento se identificam com a existência futura, de tal sorte que, ao exalarem o último suspiro, a separação é mais ou menos completa. Quando a morte surpreende um corpo cheio de vida, a separação não começa senão nesse momento, para acabar pouco a pouco. Enquanto existir uma ligação entre o corpo e o Espírito, este estará perturbado e, caso entre bruscamente no mundo dos Espíritos, experimentará um sobressalto que não lhe permitirá reconhecer imediatamente a sua situação, bem como as propriedades de seu novo corpo. É necessário ensaiar de alguma maneira e é isso que o faz pensar que ainda pertence a este mundo.
        Além das circunstâncias de morte violenta, há outras que tornam mais tenazes os laços entre o corpo e o Espírito, porque a ilusão de que falamos observa-se igualmente em certos casos de morte natural: é quando o indivíduo viveu mais a vida material que a vida moral. Concebe-se que o seu apego à matéria o retém ainda depois da morte, prolongando, assim, a ideia de que nada mudou para ele. Tal é o caso da pessoa de quem acabamos de falar.
        Notemos a diferença existente entre a situação desse indivíduo e a do segundo parente: um ainda quer mandar; julga necessitar de suas malas, de seus cavalos, de sua carruagem, para ir ao encontro da esposa; ainda não sabe que, como Espírito, pode fazê-lo instantaneamente ou, melhor dizendo, seu perispírito ainda é tão material que se julga submetido a todas as necessidades do corpo. O outro, que viveu a vida moral, que tinha sentimentos religiosos, que se identificou com a vida futura, embora surpreendido de modo mais inesperado que o primeiro já está desprendido: diz que vive no meio da família, mas sabe que é um Espírito; fala à esposa e aos filhos, mas sabe que o faz pelo pensamento. Numa palavra, já não tem ilusões, ao passo que o outro ainda se acha perturbado e angustiado. De tal forma possui o sentimento da vida real que viu a esposa e o filho que partiam, como realmente partiram no dia indicado, fato ignorado pelo parente a quem apareceu.
        Notemos, além disso, uma expressão muito característica de sua parte, que bem descreve a sua posição. À pergunta: “De onde vens?” respondeu inicialmente pelo nome do lugar que habitava; a seguir, a esta outra pergunta: “Do castelo?” Não! Venho do cemitério — respondeu com pavor. Ora, isto prova uma coisa: que não sendo completo o desprendimento, uma espécie de atração ainda existia entre o Espírito e o corpo, que o levou a dizer que vinha do cemitério. Mas nesse momento parece que começou a compreender a verdade. A própria pergunta parece colocá-lo no caminho, chamando-lhe a atenção para seus despojos. Daí por que pronunciou a palavra cemitério com pavor.
(Revista Espírita. Dezembro de 1859. Allan Kardec)

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