Renovação

        Suspirava pela nomeação para o cargo público que lhe daria quarenta mil cruzeiros por mês. Conquistara o diploma de bacharel. Numa noite, acalentando o desejo de instituir várias obras de beneficência em favor da Humanidade sofredora, Raimundo Perez orava, extático.
        Queria subir. Desvencilhar-se do corpo físico.
        Entraria em contato com a Esfera Superior e formularia a súplica que acalentava no íntimo.
        Aspirava ao título de benemérito no campo da Doutrina que professava.
        Mas precisava de dinheiro. Muito dinheiro.
        Quem sabe? Somente os Espíritos superiores poderiam dissolver as dificuldades que se lhe antepunham ao grande intento, e pensava:
        — “Nomeado com os vencimentos de quarenta mil cruzeiros mensais, poderia encontrar o necessário começo... Em seguida, ganharia influência, atrairia poderosos, escalaria a montanha do ouro e granjearia importância política para cumprir a missão...”
        Embalado em deliciosas miragens, Perez dormiu e viu-se efetivamente desligado da máquina corpórea.
        Reconheceu-se subindo, subindo... até que se viu em amplo salão, à frente de nobre instrutor que o recebeu entre bondoso e severo.
        A breves momentos inteirou-se de toda a situação.
        Alcançara grande instituto do Plano Superior, que supervisionava várias tarefas espíritas na esfera dos homens.
        Contudo, não era ali o único visitante.
        Em torno, enorme multidão. Muitas vozes, muita gente.
        Alguém, mais categorizado que ele mesmo para pedir, ergueu-se diante do benfeitor e, com sublime sinceridade, rogou informes sobre a razão de tantos fracassos entre os companheiros do Espiritismo, na Terra.
        Era um missionário da verdadeira fraternidade, buscando piedosamente recursos de amparo moral para os próprios irmãos na fé.
        Ninguém ousou adiantar-se-lhe aos rogos.
        A petição era comovente demais para que outros requerimentos lhe tomassem a dianteira.
        Foi então que o generoso mentor tomou a palavra e falou com franqueza: — “Com base em inúmeros dados estatísticos colhidos junto aos nossos companheiros na Terra, podemos esclarecer que grande número dos profitentes do Espiritismo, na carne, tem fracassado devido às seguintes atitudes:
        — Querem dinheiro e dominação...
        — Querem autoridade e influência...
        — Querem saúde física perfeita...
        — Querem a compreensão alheia integral...
        — Querem as mais altas concessões da mediunidade, sem esforço para obtê-las…
        Tudo isto porque se esquecem de que, na Terra, devemos estar cientes do ensino de Jesus, que afirmou categórico, quando esteve na carne: — “Meu reino não é deste mundo.”
        O benfeitor teceu ainda algumas considerações sobre o tema e, ao acabar de falar, Raimundo sentiu-se desamparado em si mesmo.
        Guardava a sensação de quem via o solo a fugir-lhe dos próprios pés.
        E sentiu-se cair... do alto, de muito alto... E acordou.
        Identificara-se, mas visceralmente transformado.
        Conservava a impressão de prosseguir envergonhado de si mesmo.
        Acompanhou a mãezinha ao mercado, ajudando-a, prestativo. Não mais falava na sua nomeação com o entusiasmo anterior, e a palavra dinheiro passou a ter, para ele, importância bem secundária.
        À vista de tudo isto, D. Conceição, a genitora, chamou os dois filhos mais velhos a longa conversação e assentaram juntos que um psiquiatra devia ser consultado.
        Anotando a súbita renovação de Raimundo, todos os familiares julgaram que o pobre rapaz ficara perturbado da razão...
(Almas em desfile. Hilário Silva. Psicografado por Waldo Vieira)

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