Os Servos - A história de um criado

            Numa viagem que fizemos há dois anos, vimos, numa família da alta sociedade, um criado muito jovem, cujo rosto, fino e inteligente, nos impressionou pelo seu ar de distinção. Nada em suas maneiras denotava inferioridade; sua dedicação ao serviço dos patrões não tinha essa obsequiosidade servil, própria das pessoas de tal condição. Voltando àquela família no ano seguinte, e não mais vendo o rapaz, perguntamos se o haviam despedido. “Não”, responderam-me; “foi passar alguns dias em sua terra e lá morreu. Lamentamos muito, pois era um excelente sujeito e tinha sentimentos realmente acima de sua posição. Era muito ligado a nós, tendo nos dado provas do maior devotamento.”

            Mais tarde veio-nos a idéia de evocar o rapaz. Eis o que ele nos disse:

            “Em minha última encarnação eu era, como se diz na Terra, de boa família, embora arruinada pela prodigalidade de meu pai. Fiquei órfão e sem recursos ainda muito jovem. O Sr. G... foi o meu benfeitor; educou-me como filho e deu-me uma boa instrução, que muito me envaideceu. Na última existência quis expiar meu orgulho, nascendo em condição servil e aqui encontrei ocasião de provar dedicação ao meu benfeitor. Até lhe salvei a vida, sem que ele jamais desconfiasse. Era ao mesmo tempo uma prova, da qual tirei partido, pois tive bastante força para não me deixar corromper pelo contato com um meio quase sempre vicioso. Apesar dos maus exemplos, fiquei puro, pelo que dou graças a Deus por ter sido recompensado pela felicidade que desfruto.”

 

            P. – Em que circunstâncias salvastes a vida do Sr. G...?

            Resp. – Num passeio a cavalo, em que eu o seguia só, percebi uma grande árvore que caía ao seu lado, sem que ele a visse. Adverti-o com um grito terrível; ele recuou bruscamente, enquanto a árvore tombava aos seus pés. Sem o movimento que provoquei, ele teria sido esmagado.

Observação – O fato foi relatado ao Sr. G..., que dele se lembrou perfeitamente.

 

            P. – Por que morrestes tão jovem?

            Resp. – Deus tinha julgado minha prova suficiente.

            P. – Como pudestes aproveitar a prova, se não guardáveis lembrança de vossa precedente existência e da causa que a motivara?

            Resp. – Em minha humilde posição, restava-me um instinto de orgulho, que tive a felicidade de dominar. Isto tornou a prova muito proveitosa, sem o que teria de recomeçá-la. Em seus momentos de liberdade, o meu Espírito se lembrava e, ao despertar, ficava um desejo intuitivo de resistir às minhas tendências, que eu sentia serem más. Assim, tive mais mérito em lutar do que se me recordasse claramente do passado. A lembrança perturbadora de minha antiga posição teria exaltado o meu orgulho, enquanto tive apenas de combater os arrastamentos da nova posição.

 

            P. – Recebestes uma educação brilhante. Para que vos serviu na última existência, uma vez que não vos recordáveis dos conhecimentos adquiridos?

            Resp. – Esses conhecimentos teriam sido inúteis, mesmo um contra-senso em minha nova situação. Ficaram latentes e hoje os recupero. Contudo, não me foram inúteis, pois me desenvolveram a inteligência; instintivamente eu tinha gosto pelas coisas elevadas, o que me inspirava repulsa pelos exemplos baixos e ignóbeis que tinha sob os olhos. Sem tal educação eu não teria passado de um simples criado.

 

            P. – Os exemplos de domésticos que se dedicam aos patrões até a abnegação têm por causa relações anteriores?

            Resp. – Não o duvideis; é, pelo menos, o caso mais comum. Por vezes tais criados são membros da família ou, como eu, seres agradecidos que pagam uma dívida de reconhecimento e cuja dedicação lhes auxilia o progresso. Não sabeis de todos os efeitos das simpatias e antipatias que essas relações anteriores produzem no mundo. Não, a morte não interrompe tais relações, que muitas vezes se perpetuam de um século a outro.

 

            P. – Por que tais exemplos de dedicação dos domésticos são hoje tão raros?

            Resp. – Deve-se incriminar o espírito de egoísmo e de orgulho do vosso século, desenvolvido pela incredulidade e pelas idéias materialistas. A verdadeira fé desaparece pela cupidez e pelo desejo de ganho e, com ela, a dedicação. Reconduzindo os homens ao sentimento da verdade, o Espiritismo fará renascer as virtudes esquecidas.

 

Observação – Nada melhor que este exemplo para ressaltar o benefício do esquecimento das existências anteriores. Se o Sr. G... se tivesse lembrado de quem tinha sido seu jovem criado, ficaria muito constrangido e nem mesmo o teria conservado naquela condição, entravando, assim, a prova, que a ambos foi proveitosa.

 

(Revista Espírita. Janeiro de 1863. Allan Kardec)

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