Aquele junho estava ardente, mais do que nos anos anteriores.
(...) A montanha, de suave aclive, terminava em largo platô salpicado de árvores de pequeno porte, que ofereciam, no entanto, abrigo e agasalho.
Desde cedo a multidão afluíra para ali, como atraída por fascinante expectativa. Eram galileus da região em redor: pescadores, agricultores, gente simples e sofredora, sobrecarregada e aflita. Eram judeus chegados d’além Jordão, de Jerusalém, estrangeiros da Decápole. Misturavam-se as vozes nos dialetos regionais e uniam-se todos na mesma imensa curiosidade feita de expectação e desejo.
(...)Aquele Rabi, que os alentava, era o Rei aguardado há séculos, carinhosamente esperado, que os libertaria do opróbrio (da degradação social) e da servidão...
Ouviram-No e O viram mais de uma vez, e constataram que jamais alguém fizera o que Ele fazia ou falara como Ele falava.
(...)Sentindo a multidão submissa, magnetizada, esquecida de si mesma, numa sublime comunhão em que extravasava toda a vida, Ele, abrindo a sua boca, os ensinava, dizendo:
— Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus!
Os pobres, todos os conheciam. Eram maltrapilhos, malcheirosos, doentes. Distendiam a mão que a miséria estiola (enfraquece).
Eram pobres; no entanto, quantos deles portavam os tesouros da riqueza do espírito!
(...) Quais seriam os “pobres de espírito”?
(...)Os “pobres de espírito” são os livres de posses e ambições, amantes da liberdade, pugnadores dos direitos alheios, idealistas, cultores da verdade, preparados para a verdade.
(...)A multidão aguarda; pulsam os corações; os olhos de todos brilham com lampejos (luzes) diferentes.
A voz do Rabi espraia (estende) o canto:
— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados!
(...) Todos ali têm lágrimas acumuladas e muitos as vertem sem cessar, nas rudes provações, oculta ou publicamente.
Longa é a estrada do sofrimento; rudes e cruéis os dias em que se vive.
Espíritos ferreteados (feridos) pelo desconforto e desassossego, corações despedaçados, enfermidades e expiações...
Todos choram e experimentam a paz refazente, que advém do pranto.
Creem muitos que o pranto é vergonha...
Dizem outros que a lágrima é pequenez que retrata fraqueza e indignidade.
A chuva descarrega as nuvens e enriquece a terra; lava o lodo e vitaliza o pomar.
A lágrima é presença divina.
Quando alguém chora, a Lei está justiçando, abrindo rotas de paz nas províncias do espírito para o futuro.
O pranto, porém, não pode desatrelar (desprender) os corcéis da rebeldia para as arrancadas da loucura, nem conduzir, em caudal, as ribanceiras do equilíbrio, qual riacho em tumulto semeando a destruição, esgalvando (estraçalhando) as searas.
Chorar é buscar Deus nas adustas (quentes) regiões da soledade (do deserto).
A sós e junto a Ele.
(...)A multidão estua (enche) de esperança.
O Mestre, como se se alongasse, penetrando em todas as mentes, exclama, vigoroso:
— Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra!
A terra sempre pertenceu aos poderosos que aliciam a impiedade à astúcia, e podem esmagar, tripudiando sobre os tímidos e brandos.
(...)Mas a brandura é a auréola da paz, a irmã do equilíbrio.
(...)Os brandos são os possuidores da terra que ninguém arrebata, do lar que ninguém corrompe, do país onde abundam bens e as messes (os terrenos) são fecundas.
(...)A tarde serena e calma apresenta-se transparente.
Ignotas vibrações produzem musicalidade na tela imensa da paisagem colorida e ondulada.
A palavra do Mestre, expressiva, entoa mais um tema da Sinfonia Incomparável:
— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos!
(...)A caravana dos criminosos não julgados é infinita e inacabada.
Os carros dos guerreiros e vândalos passam velozes sobre cidades vencidas, órfãos e viúvas ao abandono.
A injustiça veste os corações, e a indiferença dos legisladores como dos governantes é quase conivência.
O mundo arde em sede de justiça.
O homem tomba esfaimado (faminto) às portas da Justiça.
Todavia, os desvairados retornam aos antigos passos e reencarnam imolados à loucura e estigmatizados pela crueldade.
Felizes os que experimentaram suas atrocidades.
(...)Renascendo para resgatar, recomeçando para acertar, repetindo as experiências para aprender.
Justiçado pela consciência, corrigido pelo amor, preparado para a libertação.
(...) Envolvendo todos num expressivo olhar de compaixão e entendimento, Jesus elucida:
— Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia!
A misericórdia que se doa é luz que se atira no próprio caminho; amor que se dilata pela trilha onde todos seguem.
A Terra é um vulcão de ódios, e o crime parece um gás letal que envenena ou enlouquece.
“Viver cada um para si” é filosofia vã de expansão fácil.
No entanto, só a piedade redime o criminoso, assim como a reeducação o capacita para a vida.
A misericórdia é o antídoto do ódio, voz da inteligência que dialoga e vence o instinto.
A misericórdia do Pai concede a oportunidade do renascimento no reduto do crime para reabilitação do précito (criminoso).
Perdão, que é ato de nobilitação, moeda de engrandecimento intransferível.
Misericórdia, que é amor, socorre e ajuda sem fastio (aversão, repulsa).
(...)Jesus exclama, com eloquente alegria:
— Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus!
Há um estado de quase êxtase.
Um delírio percorre a massa antes amorfa e desconexa.
Já não se podem reter as lágrimas.
Limpar o coração, nascente dos sentimentos, para ver a Deus.
(...)Abrir os olhos do sentimento para ver o que a inteligência sonha e não alcança.
Alçar voo à inocência e sintonizar com a Verdade sem retórica, em harmonia, sem interrupção para haurir vida, fruir a visão de Deus.
(...)Logo prossegue o Mestre, como a completar o augusto ensino, antes que a incompreensão assole:
— Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus!
Esparzir (distribuir) a paz, enquanto o pensamento geral é tumultuar a tranquilidade.
Herdarão a Terra os filhos de Deus, porque estes, mansos e cordatos (prudentes), serão brandos de coração.
Brandura, que é coragem de enfrentar o forte, sem o temer, submeter-se sem ceder ao império da força, dominar a ira e vencer-se para pacificar.
Quantas vezes o Mestre empregara energia sem limite ante a hipocrisia e a maldade, conservando austeridade sem violência, e firmeza de ação sem mesclas de ódio, vigor, não dureza, força moral, não desequilíbrio emocional!
(...)E num átimo de minuto, eternidade além do tempo, infinito além do espaço, conclui, afetuoso, Jesus:
— Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da Justiça, porque deles é o Reino dos Céus!
(...)O sofrimento consequente à perseguição é dádiva que reclama o Espírito de paz e prodigaliza a ventura.
O perseguidor é infeliz infelicitador.
Enfermo, faz-se calceta (prisioneiro).
Desvairado, alicia os sequazes (capangas) do próprio primitivismo em que se enfurna e com que investe.
(...)A Justiça tem seus mártires que fecundam a terra sáfara (cheia de pedregulhos) para a primícia da verdade.
“Deles é o Reino dos Céus”, que inocentes sofreram por fidelidade à Justiça Divina.
(...)A respiração entrecortada em todos os peitos por surdas exclamações, e a pulsação arrítmica enregela os corpos em tensão.
Ele parece afagar a multidão e no gesto que imprime com os braços abertos e as mãos como asas de luz prestes a desferirem voo, clama:
— Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque grande é o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós!
O sacrifício como coroamento da fé, em testemunho à convicção.
Dar direito aos outros de errarem, não se permitir, porém, errar.
Ser puro, sem aparatos de externa pureza.
Mentindo, os agressores perseguem; tranquilo, o agredido permanece inatingível.
A lama da mentira não enodoa o alvinitente (branco imaculado) da pureza.
Mãos limpas de crimes; coração puro; Espírito reto.
(...)A glória dos lutadores é a honra do serviço e sua auréola, o suor do dever.
— “Exultai! Alegria!”
Já não há dúvidas, àquela hora.
Toda a epopeia da Humanidade canta no sermão do monte.
O amor em sua mais alta expressão aí tem sua fonte inexaurível e eterna.
(Primícias do Reino. Cap. 3. Espírito Amélia Rodrigues. Psicografado por Divaldo P. Franco)