Sozinho. No velho “Sítio da Quitéria”, que herdara dos avós, Anselmo Pires, apesar da movimentação dos empregados, sentia-se sozinho.
Desde que a morte lhe arrebatara Antônia, a companheira de muitos anos, estava espiritualmente só na casa grande.
A princípio adoecera. Acamado, pedia que lhe dessem veneno. Queria desertar da existência, abandonar o mundo...
Amigos, porem, chegaram generosos e providenciais. E o velho Pires foi conduzido a um templo espírita, à procura de socorro moral. Embora desarvorado, começou a ouvir as interpretações do Evangelho, em novo sentido, e começou a melhorar. As palavras de fé e amor que escutava, atento, penetravam-no como bálsamo santo. Os livros espíritas, desempenhando o papel de conselheiros silenciosos, imprimiram-lhe novo rumo às meditações. A prece, no ambiente dos companheiros, parecia-lhe agora alimento insubstituível.
E, certa noite, ao pé dos irmãos de fé, sobreviera a ande surpresa. Desabrochou-lhe de súbita a clarividência. Viu Antônia, rediviva, ao seu lado... Chorando, ouvia-a pronunciar as antigas frases de carinho e confiança, a pedir-lhe mais ampla renovação. Desde essa hora, a existência de Pires mudara completamente.
Estava sozinhos mas desfrutando alegria misteriosa.
Não acreditava apenas. Sabia, tinha certeza. Reencontraria a esposa abnegada e inesquecível num mundo melhor. E, por isso, já não era somente o arrendatário das terras que possuía. Fizera-se, de todos os meeiros e assalariados, o amigo e o benfeitor.
Reformara os próprios hábitos. Dispunha de horário para visitar os doentes e tinha tempo para conversar com os meninos esfarrapados da vizinhança, fosse para solucionar-lhes as necessidades ou para guiá-los no aproveitamento da escola.
Com a vida transformada, surgira, no entanto, um problema.
Anselmo fora caçador inveterado e possuía vasta coleção de espingardas e lâminas, revólveres e chuços, tudo em madeira primorosamente trabalhada. Verdadeira sala de armas. Amigos, de passagem, visitavam-lhe a coleção, como quem surpreendia valioso setor de museu.
O acervo de preciosidades era avaliado em seiscentos mil cruzeiros, incluindo duas telas notáveis pela, precisão dos traços e das cores, em que se viam grandes cães estraçalhando coelhos inermes.
Anselmo envergonhava-se, agora, de reter semelhante material.
Ele que ensinava, atualmente, princípios de compaixão e caridade, não sentia satisfação em contemplar aquilo. Com o desapontamento de quem pedia perdão à Natureza, recordava o tempo em que se punha a perseguir codornizes e pacas e a experimentar o gatilho em pombos e nhambus assustados.
Nesse dia, parara por muito tempo no paiol velho, a que mandara recolher, descontente consigo próprio, dois grandes alambiques em que fazia a destilação de aguardente.
Ora, ora! Ele, espírita, como incentivar o alcoolismo? Alambiques, no engenho, agora, não tinham razão de ser. Desparafusou as máquinas e colocou-as no galpão de bugigangas.
Em seguida, num ato de bravura moral para consigo mesmo, transferiu para o antigo paiol todas as armas de que se ufanara tanto tempo! Espingardas de suas costumeiras excursões à região do Araguaia, armas que haviam pertencido ao Conde d’Eu, armas que haviam sido usadas pelo bisavô, em terras do Paraguai, armas que o sogro lhe deixara em recordação de afanosas caçadas ao javali em Mato Grosso... Juntou-as aos dois grandes painéis que lembravam pobres coelhos expondo vísceras sangrentas e comunicou à governanta que a sala de armas teria outro destino...
A seguir, Anselmo pensou, pensou...
Como desvencilhar-se de semelhantes apetrechos? Não mais fabricaria aguardente, não mais caçaria animais indefesos...
Entretanto, o material representava significativa fortuna.
Vendido, resultaria em patrimônio importante para qualquer instituição de beneficência ou conseguiria ajudar a independência econômica de qualquer dos abnegados companheiros de serviço que o cercavam. Mas seria justo – refletiu – entregar aos outros o que se fizera prejudicial a ele mesmo?
Dois dias passaram, sem que a solução lhe viesse à pergunta íntima.
Orou, pedindo a inspiração do Alto; contudo, mesmo assim, a idéia-chave não lhe surgiu à cabeça.
Em razão disso, intrigado, resolveu ir à cidade próxima, onde consultaria um benfeitor espiritual, através de um médium amigo. Expor-lhe-ia o caso. No entanto, o instrumento a que recorreria estava ausente. Pires visitou esse e aquele amigo. Trouxe a questão à baila. Mas nenhum deles, após ouvi-la, emitiu opinião em caráter definitivo. Tudo incerto.
É muito dinheiro, quase um milhão...
A resposta vinha reticencioso, de quase todos.
Pires, desalentado, tomou a charrete para a volta e outro assunto não lhe vinha ao pensamento que não fosse o montão de coisas indesejáveis a esperar-lhe a decisão.
Quase ao chegar a casa, porém, não somente avistou o bambual novo a dançar ao vento, como grande parada de bailarinos, mas também o Zé Guindo, antigo servidor da fazenda, montando o alazão de serviço, em plena disparada ao encontro dele mesmo.
– Que teria acontecido?
Mas o inquieto sitiante não teve muito tempo na indagação, porque o Zé, acercando-se do veículo, disse logo:
– “Seu” Anselmo, venha depressa! Depressa!
– Que há, homem de Deus?
– Incêndio no paiol! As crianças começaram a brincar perto e o fogo está lavrando...
– Que paiol?
– O paiol onde o senhor guardou os alambiques...
Foi então que Anselmo, como se alijasse pesada carga, iluminou o semblante de alegria que, a entremostrar-se num sorriso, estourou numa risada franca.
– Que há, patrão? – gritou o moço, aflito.
Anselmo, porém, respondeu alegremente:
– Graças a Deusa Graças a Deus!
Pires encontrara a solução ao problema que tanto o acabrunhava, mas o empregado guardava a convicção de que o velho patrão estava caduco...
(Almas em desfile. Espírito Hilário Silva. Psicografado por Chico Xavier e Waldo Vieira)