Em um cenário cada vez mais individualista, educar crianças que se importem com outras pessoas é um desafio para as famílias. Um livro recém-lançado nos Estados Unidos, porém, mostra que esse é o caminho para uma vida bem-sucedida e feliz!
No meio do ano, meu filho Gael, de 8 anos, chegou em casa aos prantos porque havia perdido dezenas de cards da Copa do Mundo na escola. Alguns dias depois, o choro foi maior ainda: ele suspeitava que um de seus melhores amigos fosse o responsável pelo sumiço das figurinhas. Na tentativa de consolá-lo rapidamente, falei algo como “talvez o seu colega não soubesse que não podia pegá-las sem pedir ao dono”. Ao que ele, prontamente, respondeu: “mãe, todas as crianças sabem o que é certo e o que é errado”. De acordo com o livro The Kindness Advantage: Cultivating Compassionate and Connected Children (“A vantagem de ser bom: criando filhos conectados e que se importam”, em livre tradução), recém-lançado nos Estados Unidos, ele tem razão. Escrito em parceria pela psicóloga Dale Atkins e pela assistente social Amanda Salzhauer, logo de início a obra mostra que os seres humanos são biologicamente programados para seguir o caminho do bem.
Algo já comprovado pela ciência inúmeras vezes. “Não é um fenômeno novo. Foi Charles Darwin quem, dentro do contexto dos mecanismos de sobrevivência, entendeu que nós temos um instinto para sermos compreensivos e cuidadosos uns com os outros”, dizem as autoras, no livro. Mas agora há cada vez mais evidências de que isso pode ser observado desde a mais tenra idade, uma sugestão de que talvez já nasçamos assim. Um experimento feito pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) com bebês de 3 meses mostrou que, já nessa fase, eles preferem aqueles que agem com bondade. Para chegar a essa conclusão, os cientistas apresentaram aos pequenos um show de fantoches com três personagens. Havia sempre um “mocinho” e um “bandido”, que ajudava ou atrapalhava, respectivamente, o terceiro bicho de pelúcia a completar sua tarefa (seja carregar uma bolsa ou escalar uma caixa). Ao final, as crianças encaravam (o que nessa idade é sinônimo de gostar) aquele que ajudava, em 80% dos casos.
O teste também mostrou resultados semelhantes entre crianças maiores, de até 2 anos.
É preciso, no entanto, exercitar essa habilidade inata. “Pense nela como um músculo. Embora faça parte do corpo, tem de ser usado para ficar mais forte. Do contrário, atrofia. A gentileza pode se tornar um hábito”, afirmam as autoras do livro, em conversa exclusiva à CRESCER (veja a entrevista na pág. 35). A princípio, elas queriam escrever sobre como incutir nas crianças valores como caridade e compaixão, porém, observaram que pessoas com essas características também tinham em comum outras qualidades, como tolerância, empatia e gratidão – a base, segundo as autoras, para uma vida bem-sucedida. “Somos seres sociais, que dependem de interações sociais, assim como da sensação de pertencimento. Começando por nossas famílias, expandindo para nossas comunidades e, depois, para o resto do mundo. Essas conexões ajudam a dar significado à nossa existência”, concluem. A questão, então, é como ensinar esses conceitos tão abstratos às crianças, se elas não querem dividir nem os brinquedos?
Faça o que eu faço As crianças são egocêntricas, é verdade. “Em primeiro lugar, elas precisam reconhecer a própria existência, para depois perceber a do outro. Essa capacidade aumenta à medida que ela cresce e, paralelamente, aprende a se comunicar melhor. Está atrelada, portanto, ao desenvolvimento cerebral”, conta a neuropediatra Karina Weinmann, fundadora da clínica Neurokinder (SP). A especialista ressalta, porém, que os pais não devem subestimar os pequenos. “Aos 6 meses, um bebê já sorri de volta para quem é gentil com seus pais. Aos 2 anos, ergue os bracinhos para ajudar quem o está vestindo. São pequenos gestos que mostram que ele se importa, sim, com o outro. Então, os pais podem e devem ensinar o que é certo e errado desde sempre”, diz.
E a melhor maneira, como você já deve suspeitar, é pelo exemplo. Como provavelmente aprendeu com seus pais e professores. “O que você faz fala tão alto que não consigo escutar o que você diz”, diz a psicopedagoga Isa Minatel, autora de Crianças sem Limites (Editora Chiado Brasil), citando uma frase atribuída ao filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882). Ou seja, devemos ter coerência entre ações e palavras. A professora Jordana Romero, 41, mãe de Matheus, 10, e Sofia, 13, coloca esse discurso em prática. Por isso, prioriza o diálogo. “Adianta bater no seu filho e esperar que ele aja diferente com os colegas?”, questiona. Para ela, saber se colocar no lugar das crianças também é fundamental. “Aqui em casa, a gente doa brinquedos e roupas o ano inteiro, não só na época do Natal. Mas tem sempre aquele que eles pedem para ficar por mais tempo, e está tudo bem. Tem de fazer porque quer, não porque é obrigado”, acredita. Isa concorda e explica o motivo: “Quando fazemos alguma coisa por medo da punição ou por querer uma recompensa em troca, não estamos agindo exatamente por acreditar naquilo. Sendo assim, essa educação tradicional, a meu ver, apenas condiciona em vez de educar”.
Se o filho vai aprender pelo exemplo, o que vai fazer a diferença aqui é a qualidade do vínculo entre vocês. “Uma vez que esse aprendizado é observacional, a criança precisa de referências positivas. E quando está inserida em um ambiente amável, é claro, irá responder à altura”, justifica a neuropediatra Karina. Que tal, então, refletir sobre seus próprios valores, comportamentos e preconceitos? O mundo que vamos deixar para os nossos filhos depende dos filhos que vamos deixar para o nosso mundo, como diz outro filósofo, mais atual, Mario Sergio Cortella.
No seu lugar
Se tem algo de que o planeta está precisando é empatia, não? Se você acha que as pessoas são menos solidárias hoje em dia, provavelmente não é apenas impressão sua. Essa é a opinião também do escritor australiano Roman Krznaric, autor de diversos livros sobre relações humanas, entre eles o best-seller O Poder da Empatia - A Arte de se Colocar no Lugar do Outro para Transformar o Mundo (Editora Zahar, R$ 59,90). Para provar sua teoria, ele cita no livro um estudo feito na Universidade de Michigan (EUA) que revelou ter havido um declínio nos níveis de empatia nos jovens americanos entre 1980 e os dias atuais, com a queda mais acentuada nos últimos dez anos. Mudança, segundo os pesquisadores, que se deve ao fato de mais pessoas morarem sozinhas e dedicarem menos tempo a atividades
Sociais e comunitárias.
O problema é que, cada vez mais, nossas crianças são cercadas de muros, portões, guaritas: do condomínio, da escola, do shopping center e por aí vai. E assim, crescem distantes da realidade, sem saber que outras pessoas estão precisando de ajuda. Alguém se identifica? “Antigamente, quando a maioria das crianças estudava em instituições públicas, convivia com pessoas de várias classes sociais. Essa falta de vivência com o diferente que temos hoje gera medo, estranheza, dificuldade em se colocar no lugar do outro”, alerta a monja zen-budista Cláudia Dias Baptista de Souza, mais conhecida como Monja Coen.
Preocupado com essa questão, Krznaric, que esteve no Brasil recentemente para o lançamento de seu último livro, Carpe Diem - Resgatando a Arte de Aproveitar a Vida (Editora Zahar), contou em um bate-papo com a CRESCER que fez questão de matricular os filhos (um casal de gêmeos de 10 anos) em uma escola pública. “Uma das razões foi que um terço dos alunos daquela instituição [ele vive em Oxford, Inglaterra] é de muçulmanos, e eu e minha esposa queremos que nossos filhos encarem isso naturalmente. Até porque, do contrário, como irão desenvolver um senso de justiça se não tiverem a oportunidade de desafiar pré-conceitos e estereótipos?”, diz o autor, que também é um dos fundadores da The School of Life, espaço que oferece cursos, programas e serviços para se viver melhor.
Para além dos muros
Mas é claro que ninguém precisa mudar o filho de escola por causa disso. Ainda que transmitir valores não seja o papel principal das instituições de educação, para a educadora Priscila Torres, diretora da Escola Concept (SP), eles devem, sim, estar inseridos na metodologia escolar. “Ao falarmos com as crianças sobre sustentabilidade, por exemplo, a discussão pode ir além, pois cuidar do meio ambiente também significa ser um bom cidadão”, diz. Metáforas, filmes, livros e jogos educativos também são ótimos para ajudar o seu filho a internalizar tais conceitos, segundo ela. A educadora sugere, ainda, que as escolas se envolvam em projetos sociais – como o The Street Store, loja criada na comunidade de Heliópolis (SP) a partir de doações dos alunos da Concept.
A monja Coen dá dicas extras, e a primeira delas é simples: fazer mais refeições em família. “Nesse momento de conexão, os pais podem aproveitar para adicionar à clássica pergunta ‘o que você fez hoje?’, outra também importante, ‘como isso pode ajudar as pessoas na prática?”, diz. Outra ação, que pode ser aplicada tanto em casa quanto na escola, é incentivar a criança a cultivar uma planta. “Uma boa oportunidade de entender e atender às necessidades do outro, ou seja, um treino para sair do ego”, diz. Ela sugere, por fim, o estímulo aos esportes coletivos, de modo que as crianças vejam o quanto é divertido trabalhar em grupo, e o veto aos games violentos. “Não podemos banalizar a vida, mesmo que virtualmente”, completa.
Em resumo, um dos melhores incentivos à tolerância é o enfoque nas nossas semelhanças – e não nas diferenças. Por isso, sempre que possível, visite museus, frequente restaurantes de outras etnias, viaje com o seu filho. “Devemos mostrar às crianças que somos todos iguais, afinal, fazemos parte da mesma espécie e família: a humana”, diz Coen. E tudo isso, a líder espiritual garante, independe de religião.
Menos presentes, mais presença
O contato com outras realidades também reforça um dos pilares da bondade: a gratidão. Ensinar o seu filho a falar “por favor”, “obrigado” e “desculpe” – de preferência olhando nos olhos das pessoas, e não no tablet – é o básico. Mas não basta. Principalmente se considerarmos a “epidemia de narcisismo” que vivemos hoje, como alerta Krznaric.
A professora Lívia Polichiso, 32, mãe de Catherine, 1 ano e meio, não tem dúvidas disso. “Quero que minha filha aprenda que nasceu em um contexto privilegiado e, portanto, além de ser grata por isso, é sua responsabilidade ajudar outras pessoas que não tiveram a mesma sorte. O sol é para todos, mas as oportunidades, não”, diz. Ela sempre participou de movimentos sociais – foi em um grupo de jovens da igreja que conheceu o marido –, mas acabou se afastando deles por um período para se dedicar à filha. Agora que a menina ganhou mais autonomia, planeja voltar. “E vou levá-la junto, claro”, diz a mãe.
E já que o consumismo, segundo o autor, está na origem do problema, vale a pena fazer um exercício proposto pela psicóloga Isa Minatel. “Em vez de apenas doar o que está sobrando, os pais devem se perguntar: será mesmo que precisamos de tudo isso?”, diz. E o período de festas, excessos alimentares e troca de presentes que se aproxima é um bom momento para pensar a respeito.
E por falar em individualismo, o sumiço dos cards da Copa nunca foi solucionado por “falta de provas”. Pode ser que meu filho tenha se enganado, por que não? Mas uma vez que se acalmou, expliquei a ele que se o amigo realmente tivesse pegado as figurinhas, deveria tentar entender seus motivos. O segundo passo seria relevar – deu certo, eles continuam próximos. E, por último, ficar feliz por ter completado o álbum apesar do ocorrido. O que conseguiu, principalmente, trocando cards com os colegas – muitos, aliás, ganhando de presente deles. Porque as crianças sabem, sim, que precisamos cooperar uns com os outros para sermos mais felizes. E os adultos precisam se lembrar disso mais vezes – não apenas nos últimos meses do ano.
(Malu Echeverria. Fonte: https://revistacrescer.globo.com/Criancas/Comportamento/noticia/2018/12/como-ensinar-seu-filho-ter-mais-empatia.html )