Sociedade, 19 de outubro de 1860
Numa reunião espírita particular apresentou-se espontaneamente um Espírito, sob o nome de Baltazar, e ditou a seguinte frase por meio de batidas:
“Gosto da boa mesa e das mulheres; viva o melão e a lagosta, o café e o licor!”
Pareceu-nos que tais disposições de um habitante do mundo invisível poderiam dar lugar a um estudo sério, do qual poderíamos tirar um ensinamento instrutivo sobre as faculdades e as sensações de certos Espíritos. A nosso ver, era um interessante assunto de observação que se apresentava por si, ou, melhor ainda, que talvez tivesse sido enviado pelos Espíritos elevados, desejosos de nos fornecer meios para nos instruirmos; seríamos culpados se não o aproveitássemos. É evidente que essa frase burlesca revela, da parte do Espírito, uma natureza toda especial, cujo estudo pode lançar nova luz sobre o que podemos chamar a fisiologia do mundo espírita.
Eis por que a Sociedade julgou por bem evocá-lo, não por um motivo fútil, mas na esperança de encontrar um novo tema para instrução.
Certas pessoas crêem que só se pode aprender com o Espírito dos grandes homens: é um erro. Sem dúvida, só os Espíritos de escol nos dão lições de alta filosofia teórica; mas o que não importa menos é o conhecimento do estado real do mundo invisível. Pelo estudo de certos Espíritos tomamos, de certo modo, a natureza sobre o fato; é vendo as chagas que podemos encontrar o meio de curá-las. Como nos daríamos conta das penas e sofrimentos da vida futura se não tivéssemos visto Espíritos infelizes? Por eles compreendemos que se pode sofrer muito sem estar no fogo e nas torturas materiais do inferno, e essa convicção, dada pela escória da vida espírita, não é uma das causas que têm contribuído menos para atrair partidários à doutrina.
1. Evocação.
Resp. – Meus amigos, eis-me ante uma grande mesa, mas, infelizmente, vazia!
2. Esta mesa está vazia, é verdade; mas quereis dizer-nos de que vos serviria se estivesse repleta de alimentos?
Resp. – Sentiria o seu aroma, como outrora lhes saboreava o gosto.
Resposta – Esta resposta encerra todo um ensinamento.
Sabemos que os Espíritos têm as nossas sensações e percebem os odores tão bem quanto os sons. Não podendo comer, um Espírito material e sensual se repasta da emanação dos alimentos; saboreia os pelo olfato, como em vida o fazia pelo paladar. Há, pois, algo de verdadeiramente material em seu prazer; porém, como há, na verdade, mais desejo do que realidade, este mesmo prazer, aguilhoando os desejos, torna-se um suplício para os Espíritos inferiores que ainda conservam as paixões humanas.
3. Falemos muito seriamente, peço-vos. Nosso propósito não é brincar, mas instruir-nos. Quereis, pois, responder com seriedade às nossas perguntas e, se for necessário, fazei-vos assistir por um Espírito mais esclarecido.
Tendes um corpo fluídico, nós o sabemos; mas dizei se, nesse corpo, há um estômago.
Resp. – Estômago fluídico também, onde só os aromas podem passar.
4. Quando vedes um prato apetitoso, sentis vontade de comer?
Resp. – Ah! Comer! Não o posso mais; para mim essas iguarias são o que representam as flores para vós: cheirais, mas não comeis. Isto vos contenta. Pois bem! fico contente também.
5. Sentis prazer vendo os outros a comer?
Resp. – Muito, quando estou perto.
6. Sentis necessidade de comer e beber? Notai que dizemos necessidade; há pouco tínhamos dito desejo, o que não é exatamente a mesma coisa.
Resp. – Necessidade, não; mas desejo, sim. Sempre.
7. Esse desejo fica plenamente satisfeito pelo aroma que aspirais? É, para vós, como se realmente comêsseis?
Resp. – É como se vos perguntasse se a visão de um objeto, que desejais ardentemente, substitui a posse desse objeto.
8. Pareceria, conforme isso, que o desejo que experimentais deve ser um verdadeiro suplício, pois não há prazer real.
Resp. – Suplício bem maior do que imaginais; mas eu procuro atordoar-me, criando-me a ilusão.
9. Vosso estado nos parece bastante material. Dizei-nos: dormis algumas vezes?
Resp. – Não; adoro caminhar sem destino por toda parte.
10. O tempo vos parece longo? Por vezes vos aborreceis?
Resp. – Não; percorro as feiras e os mercados; vou ver a chegada da pescaria, com o que me ocupo bastante.
11. Que fazíeis quando estáveis na Terra?
Nota – Alguém diz: sem dúvida era cozinheiro.
Resp. – Eu era apreciador da boa mesa, não glutão; advogado, filho de gastrônomo; neto de gastrônomo. Meus pais eram fermiers généraux.
Respondendo em seguida à reflexão precedente, o Espírito acrescenta: Bem vês que eu não era cozinheiro. Jamais te convidaria para os meus almoços, pois não sabes comer nem beber.
12. Há muito tempo que morrestes?
Resp. – Há cerca de trinta anos, com oitenta anos de idade.
13. Vedes outros Espíritos mais felizes do que vós?
Resp. – Sim; vejo alguns cuja felicidade consiste em louvar a Deus; ainda não conheço isto: meus pensamentos continuam vinculados à Terra.
14. Compreendeis as causas que os tornam mais felizes do que vós?
Resp. – Não as estimo ainda, como aquele que, desconhecendo um prato requintado, não o sabe apreciar. Talvez um dia chegue a compreender. Adeus; vou à procura de um jantarzinho muito delicado e muito suculento. (Baltazar)
Observação – Este Espírito é bem singular; faz parte dessa classe numerosa de seres invisíveis que não se elevaram em coisa alguma acima da condição de humanidade; só têm de menos o corpo material, mas as idéias são exatamente as mesmas. Este não é um Espírito mau; não tem contra si senão a sensualidade, que é, ao mesmo tempo, para ele, um suplício e um gozo. Como Espírito não é, pois, muito infeliz; é até feliz a seu modo. Mas sabe Deus o que o espera numa nova existência! Um triste retorno poderá fazê-lo refletir e desenvolver o senso moral, ainda abafado pela preponderância dos sentidos.
(Revista Espírita. Novembro de 1860. Allan Kardec)