Atividade plena

        No salão acolhedor de Dona Isabel, permanecíamos em plena atividade. Lá fora, começara o aguaceiro forte, mas tínhamos a nítida impressão de grande distância da chuva torrencial.          

        Logo às primeiras horas da madrugada, o movimento intensificou-se. Muita gente ia e vinha.

       — Numerosos irmãos — explicou o orienta­dor — encontram-se neste pouso de trabalho espi­ritual, na esfera a que os encarnados chamariam sonho. Não é fácil transmitir mensagens de teor ins­trutivo, nessa tarefa, utilizando lugares comuns, contaminados de matéria mental menos digna. Nas oficinas edificantes, porém, onde conseguimos acu­mular maiores quantidades de forças positivas da espiritualidade superior, é possível prestar grandes benefícios aos que se encontram encarnados no pla­neta.

       Acentuei minhas observações, verificando que muitas das pessoas recém-chegadas pareciam con­valescentes, titubeantes... Algumas se mantinham de pé, sob o amparo de braços carinhosos. Eram os amigos encarnados a se valerem do desprendi­mento parcial, pelo sono físico, que se reuniam a nós, aproveitando o auxílio de entidades generosas e dedicadas. Reconhecia, entretanto, que a maior parte não entendia, com precisão, o que se lhes desejava dizer. Muitos pareciam doentes, incompreensivos. Sorriam infantilmente, revelando boa vontade na recepção dos conselhos, mas grande incapacidade de retenção. Eu estudava os quadros ambientes, com justa estranheza. Sempre cuida­doso, Aniceto veio ao encontro de nossa perple­xidade.

        — Os Espíritos encarnados — disse —, tão logo se realize a consolidação dos laços físicos, fi­cam submetidos a imperiosas leis dominantes na Crosta. Entre eles e nós existe um espesso véu. É a muralha das vibrações. Sem a obliteração temporária da memória, não se renovaria a oportunidade. Se o nosso campo lhes fôra francamente aberto, olvidariam as obrigações imediatas, estima­riam o parasitismo, prejudicando a própria evolu­ção. Eis porque raramente estão lúcidos ao nosso lado. Na maioria dos casos, junto de nós, perma­necem vacilantes, enfraquecidos... Vejam aquela jovem senhora encarnada, em conversa com a vo­vôzinha que trabalha conosco, em “Nosso Lar”.

        Assim dizendo, Aniceto indicou um grupo mais próximo.

        A anciã, de olhos brilhantes e gestos decididos, abraçava-se à neta, lânguida e palidíssima.

        — Nieta — exclamava a velhinha, em tom firme —, não dês tamanha importância aos obstáculos. Esquece os que te perseguem, a ninguém odeies. Conserva tua paz espiritual, acima de tudo. Tua mãe não te pode valer agora, mas crê na con­tinuidade de nossa vida. A vovó não te esquecerá. A calúnia, Nieta, é uma serpente que ameaça o coração; entretanto, se a encararmos de frente, fortes e tranqüilas, veremos, a breve tempo, que a serpente não tem vida própria. É víbora de brin­quedo a se quebrar como vidro, pelo impulso de nossas mãos. E, vencido o espantalho, em lugar da serpente, teremos conosco a flor da virtude. Não temas, querida! Não percas a sagrada oportunidade de testemunhar a compreensão de Jesus!...

        A jovem senhora não respondia, mas seus olhos semilúcidos estavam cheios de pranto. Demons­trava no gesto vago uma consolação divina, recos­tada ao seio carinhoso da devotada velhinha.

        —  Esta irmã se lembrará de tudo, ao des­pertar no corpo físico? — perguntei, intrigado, ao nosso orientador.

        Aniceto sorriu e esclareceu:

        —  Sendo a avó superior e ela inferior, e, exa­minando ainda a condição dos planos de vida em que ambas se encontram, a jovem encarnada está sob o domínio espiritual da benfeitora. Entre ambas, portanto, há uma corrente magnética recí­proca, salientando-se, porém, que a vovó amiga detém uma ascendência positiva. A neta não vê o ambiente com precisão, nem ouve as palavras integralmente. Não esqueçamos que o desprendi­mento no sono físico vulgar é fragmentário e que a visão e a audição, pecullares ao encarnado, se encontram nele também restritas, O fenômeno, pois, é mais de união espiritual que de percepções sensoriais, prôpriamente ditas. A jovem está recebendo consolações positivas, de Espírito a Espírito. Não se recordará, despertando nos véus materiais mais grosseiros, de todas as minúcias deste ven­turoso encontro que acabamos de presenciar. Acor­dará, porém, encorajada e bem disposta, semi poder identificar a causa da restauração do bom ânimo. Dirá que sonhou com a avó num lugar onde havia muita gente, sem recordar as minudências do fato, acrescentando que viu, no sonho, uma cobra amea­çadora, que logo se transformou em serpente de vidro, quebrando-se ao impulso de suas mãos, para transformar-se em perfumosa flor, da qual ainda conserva a lembrança agradável do aroma. Afirmará que soberano conforto lhe invadiu a alma e, no fundo, compreenderá a mensagem consoladora que lhe foi concedida.

        —  Não se lembrará, contudo, das palavras ouvidas? — indagou Vicente, curioso.

        — Precisaria ter adquirido profunda lucidez no campo da existência física — prosseguiu Aniceto, explicando — e devo esclarecer que recordará as imagens simbóllcas da víbora e da flor, porque está em relação magnética com a veneranda avózi­nha, recebendo-lhe a emissão de pensamentos posi­tivos.  A benfeitora não fala apenas. Está pensando fortemente também. A neta, todavia, não está ouvindo ou vendo pelo processo comum, mas está percebendo claramente a criação mental da anciã amiga, e dará notícia exata dos simbolos entrevistos e arquivados na memória real e profunda. Desse modo, não terá dificuldade para informar-se quan­to à essência do que a bondosa avó deseja transmi­tir-lhe ao coração sofredor, compreendendo que a calúnia, quando fere uma consciência tranqüila não passa de serpente mentirosa, a transformar-se em flor de virtude nova, quando enfrentada com o valor duma coragem serena e cristã.

        A lição fôra profundamente significativa para mim. Começava a adquirir amplas noções do inter­câmbio entre as duas esferas. Pensei no longo esforço dos que indagam o mundo dos sonhos. Quanta riqueza psíquica, suscetível de conquista, se os pesquisadores conseguissem deslocar o centro de estudo, das ocorrências fisiológicas para o campo das verdades espirituais! Lembrei a psicanálise, a tese freudiana, as manifestações instintivas, infe­riores.

        Percebendo-me as elucubrações, o devotado mentor dirigiu-me a palavra de maneira especial:

        — Freud — asseverou Aniceto — foi um grande missionário da Ciência; no entanto, man­teve-se, como qualquer Espírito encarnado, sob cer­tas limitações. Fêz muito, mas não tudo, na esfera da indagação psíquica.

       Pela pausa do nosso instrutor, percebi que ele não desejava entrar em minucioso exame da teoria famosa. Lembrando, porém, a extraordinária importância atribuída pelo grande cientista às ten­dências inferiores, indaguei, um tanto tímido:

        — Haverá, porém, centros de reunião para os espíritos desequilibrados no mal, como acontece, aqui, aos amigos interessados no bem?

        O generoso mentor sorriu, benévolo, e falou:

        — Não haja dúvidas quanto a isto. Através das correntes magnéticas suscetíveis de movimentação, quando se efetua o sono dos encarnados, são     mantídas obsessões inferiores, perseguições perma­nentes, explorações psíquicas de baixa classe, vam­pirismo destruidor, tentações diversas. Ainda são poucos, relativamente, os irmãos encarnados que sabem dormir para o bem...

        E, fazendo um gesto por demais expressivo, concluiu:

        — Livre-nos o Senhor de cair novamente...

(Os mensageiros. Espírito André Luiz. Psicografado por Chico Xavier)

          

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