João Mateus, distinto pregador do Evangelho na seara espírita, na noite em que atingiu meio século de idade no corpo físico, depois de orar enternecidamente com os amigos, foi deitar-se. Sonhou que alcançava as portas da Vida Espiritual, e, deslumbrado com a leveza de que se via possuído, intentava alçar-se para melhor desfrutar a excelsitude do Paraíso, quando um funcionário da Passagem Celeste se aproximou, a lembrar-lhe, solícito:
— João, para evitar qualquer surpresa desagradável no avanço, convém uma vista d’olhos em sua ficha...
E o viajante recebeu primoroso documento, em cuja face leu, espantadiço:
— João Mateus.
— Renascimento na Terra em 1904.
— Berço manso.
— Pais carinhosos e amigos.
— Inteligência preciosa.
— Cérebro claro.
— Instrução digna.
— Bons livros.
— Juventude folgada.
— Boa saúde.
— Invejável noção de conforto.
— Sono calmo.
— Excelente apetite.
— Seguro abrigo doméstico.
— Constante proteção espiritual.
— Nunca sofreu acidentes de importância.
— Aos 20 anos de idade, empregou-se no comércio.
— Casou-se aos 25, em regime de escravização da mulher.
— Católico romano até os 26.
— Presenciou, sem maior atenção, 672 missas.
— Aos 29 de idade, transferiu-se para as fileiras espíritas.
— Compareceu a 2195 sessões de Espiritismo, sob a invocação de Jesus.
— Realizou 1602 palestras e pregações doutrinárias.
— Escreve cartas e páginas comoventes.
— Notável narrador.
— Polemista cauteloso.
— Quatro filhos.
— Boa mesa em casa.
— Não encontra tempo para auxiliar os filhos na procura do Cristo.
— Efetuou 106 viagens de repouso e distração.
— Grande intolerância para com os vizinhos.
— Refratário a qualquer mudança de hábitos para a prestação de serviço aos outros.
— Nunca percebe se ofende o próximo, através da sua conduta, mas revela extrema suscetibilidade ante a conduta alheia.
— Relaciona-se tão somente com amigos do mesmo nível.
— Sofre horror às complicações da vida social, embora destaque incessantemente o imperativo da fraternidade entre os homens.
— Sabe defender-se com esmero em qualquer problema difícil.
— Além dos recursos naturais que lhe renderam respeitável posição e expressivo reconforto doméstico, sob o constante amparo de Jesus, através de múltiplos mensageiros, conserva bens imóveis no valor de Cr$ 600.000,00 e guarda em conta de lucro particular a importância de Cr$ 302.000,00.
— Para Jesus, que o procurou na pessoa de mendigos, de necessitados e doentes, deu durante toda a vida 90 centavos.
— Para cooperar no apostolado do Cristo, já ofereceu 12 cruzeiros em obras de assistência social.
— Débito...
Quando ia ler o item referente às próprias dívidas, fortemente impressionado, João acordou.
Era manhãzinha...
À noite, bem humorado, reuniu-se aos companheiros, relatando-lhes a ocorrência.
Estava transformado, dizia. O sonho modificara-lhe o modo de pensar. Consagrar-se-ia doravante a trabalho mais vivo no movimento espírita. Pretendia renovar-se por dentro, reuniria agora palavra e ação.
Para isso, achava-se disposto a colaborar substancialmente na construção de um lar destinado à recuperação de crianças desabrigadas que, desde muito, desejava socorrer.
A experiência daquela noite inesquecível era, decerto, um aviso precioso. E, sorridente, despediu-se dos irmãos de ideal, solicitando-lhes novo reencontro para o dia seguinte. Esperava assentar as bases da obra que se propunha levar a efeito.
Contudo, na noite imediata, quando os amigos lhe bateram à porta, vitimado por um acidente das coronárias, João Mateus estava morto.
(Contos e a pólo gostaria. Irmão X. Psicografado por Chico Xavier)