A desencarnação de Dimas

            Depois de vários preparativos, principalmente ao lado de Cavalcante, que piorara após a intervenção cirúrgica, Jerônimo articulou providências referentes à desencarnação de Dimas, cuja posição era das mais precárias.
            De manhãzinha, após entender-se com a Irmã Zenóbia, quanto à localização do primeiro amigo a libertar-se dos laços físicos, o Assistente convidou-nos ao trabalho.
            Compreendia, mais uma vez, que há tempo de morrer, como há tempo de nascer. Dimas alcançara o período de renovação e, por isso, seria subtraído à forma grosseira, de modo a transformar-se para o novo aprendizado. Não fora determinado dia exato. Atingira-se o tempo próprio. Recordando, contudo, meu caso particular e sequioso de elucidações construtivas, ousei interrogar nosso orientador, enquanto regressávamos ao Círculo carnal, pela manhã.
            — Prezado Assistente, — indaguei, — releve-me o desejo de saber particularidades do serviço... Poderá, todavia, informar-me se Dimas desencarnará em ocasião adequada? Viveu ele toda a cota de tempo suscetível de ser aproveitada por seu Espírito na Crosta da Terra? Completou a relação de serviços que o trouxera ao renascimento?
            — Não, — respondeu o interpelado, com firmeza, — não chegou a aproveitar todo o tempo prefixado.
            — Oh! — Considerei, levianamente, — terá sido, como fui, suicida inconsciente? Penetrei nossa colônia nessa condição e, antes de obter a graça do refúgio renovador, experimentei acerbos padecimentos.
            Enunciando tal apreciação, ponderava sobre a tarefa especial de socorrê-lo. Razões fortes, decerto, motivariam o esforço que se levava a efeito, mas a informação do orientador desconcertava-me. Se o irmão referido não completara o tempo previsto ao roteiro de obrigações que lhe fora traçado, porque tamanha consideração? Mereceria o movimento excepcional de assistência individualizada? Que motivo impeliria a Esfera superior a prestar-lhe tanta atenção?
            Jerônimo compreendeu, sem dúvida, a venenosa preocupação que me absorvia o pensamento, mas absteve-se de longas explicações, confirmando, simplesmente:
            — Não, André, nosso amigo não é suicida.
            Mais acertado seria silenciar raciocínios suspeitos; entretanto, meu inveterado instinto de pesquisa intelectual era demasiado forte para dominar-me.
            Fixando-o, algo confundido, tornei a perguntar:
            — Mas se Dimas não aproveitou todo o tempo de que dispunha, não terá também desperdiçado a oportunidade, como aconteceu a mim mesmo?
            Meu interlocutor estampou no semblante leve sorriso e acentuou, compassivo:
            — Não conheço seu passado, André, e acredito que as melhores intenções terão movido suas atividades no pretérito.  A situação do amigo a que nos referimos, porém, é muito clara. Dimas não conseguiu preencher toda a cota de tempo que lhe era lícito utilizar, em virtude do ambiente de sacrifício que lhe dominou os dias, na existência a termo. Acostumado, desde a infância, à luta sem mimos, desenvolveu o corpo, entre deveres e abnegações incessantes. Desfavorecido de qualquer vantagem material no princípio, conheceu ásperas obrigações para ganhar a intimidade com as leituras mais simples. Entregue ao serviço rude, no verdor da mocidade, constituiu a família, pingando suor no sacrifício diário. Passou a vida em submissão a regulamentos, conquistando a subsistência com enorme despesa de energia.  Mesmo assim, encontrou recursos para dedicar-se aos que gemem e sofrem nos planos mais baixos que o dele. Recebendo a mediunidade, colocou-a a serviço do bem coletivo. Conviveu com os desalentados e aflitos de toda sorte. E porque seu Espírito sensível encontrava prazer em ser útil e em razão dos necessitados guardarem raramente a noção do equilíbrio, sua existência converteu-se em refúgio de enfermos do corpo e da alma.  Perdeu, quase integralmente, o conforto da vida social, privou-se de estudos edificantes que lhe poderiam prodigalizar mais amplas realizações ao idealismo de homem de bem e prejudicou as células físicas, no acúmulo de serviço obrigatório e acelerado na causa do sofrimento humano.  Pelas vigílias compulsórias, noite a dentro, atenuou-se-lhe a resistência nervosa; pela inevitável irregularidade das refeições, distanciou-se da saúde harmoniosa do estômago; pelas perseguições gratuitas de que foi objeto, gastou fosfato excessivamente e, pelos choques reiterados com a dor alheia, que sempre lhe repercutiu amargamente no coração, alojou destruidoras vibrações no fígado, criando afecções morais que o incapacitaram para as funções regeneradoras do sangue.
            (...) Dimas poderia receber, com naturalidade, semelhantes emissões destrutivas, mantendo-se na serenidade intangível do legítimo apóstolo do Evangelho. Todavia, não se organiza de um dia para outro o anteparo psíquico contra o bombardeio dos raios perturbadores da mente alheia, como não é fácil improvisar cais seguro ante o oceano em ressaca. Cercado de exigências sentimentais, subalimentado, maldormido, teve as reiteradas congestões hepáticas convertidas na cirrose hipertrófica, portadora da desintegração do corpo.
            (...) Calei-me, humilhado. O hábito de analisar pessoas e ocorrências, unilateralmente, mais uma vez me impunha proveitosa decepção. (...) O dedicado servidor do bem empregara as possibilidades que o Céu lhe confiara em benefício de outrem. Quanto a mim, centralizado em mim mesmo, gozara essas possibilidades até ao clímax, perdendo-me pela abusiva saciedade.
            (...) Em breve, chegávamos à residência do enfermo, cujo estado era gravíssimo.
            Alguns amigos desencarnados velavam, atentos.
            Iluminada entidade que evidenciava grande interesse pelo agonizante, acercou-se do Assistente, indagando se o decesso fora marcado para aquele dia.
            — Sim, — esclareceu o interpelado, — a resistência orgânica terminou. Estamos autorizados a aliviá-lo, o que faremos hoje, alijando-lhe o fardo pesado de matéria densa.
            A interlocutora consultou-o, ainda, sobre a oportunidade de reunir ali alguns beneficiários da missão cumprida pelo moribundo, que lhe desejavam testemunhar carinhoso apreço, no derradeiro dia carnal.
            — Minha amiga compreende as dificuldades inerentes ao assunto, — respondeu o nosso dirigente com gentileza. — Se Dimas estivesse plenamente senhor das emoções,  não surgiria inconveniente algum. Entretanto, ele permanece agora sob agitações psíquicas muito fortes. Conhece o fim próximo do aparelho carnal, mas não pode esquivar-se, de súbito, às algemas domésticas. Teme o futuro dos seus, conserva-se em total descontrole dos nervos e enlaça-se nas emissões de inquietude da esposa e dos filhos.  Cremos ser inoportuna essa visita compacta, no decorrer das atividades da desencarnação, mesmo em se tratando dos melhores amigos do doente, para que se lhe não agrave o descontrole mental. Dimas poderá, não obstante, ser amparado pelo afeto dos que por ele têm afeição, logo se desfaça do corpo grosseiro.  Além disso, sugiro que a manifestação de carinho, merecida e justa, lhe seja prestada por quantos o estimam, no dia em que nos deslocarmos da Casa Transitória de Fabiano para as regiões mais altas. Nosso irmão e cooperador descansará, ali, sob atencioso cuidado, junto de outros amigos em condições análogas. Não faltaremos com o aviso prévio sobre sua partida, para que se congreguem conosco os seus afeiçoados, na prece de reconhecimento que elevaremos ao Todo-Poderoso.
            (...) A esposa do médium, ao pé dele, não obstante prolongadas vigílias e sacrifícios estafantes, que a expressão fisionômica denunciava, mantinha-se firme a seu lado, olhos vermelhos de chorar, emitindo forças de retenção amorosa que prendiam o moribundo em vasto emaranhado de fios cinzentos, dando-nos a impressão de peixe encarcerado em rede caprichosa.
            Jerônimo apontou-a, bondoso, e explicou:
            — Nossa pobre amiga é o primeiro empecilho a remover. Improvisemos temporária melhora para o agonizante, a fim de sossegar-lhe a mente aflita. Somente depois de semelhante medida conseguiremos retirá-lo, sem maior impedimento. As correntes de força, exteriorizadas por ela, infundem vida aparente aos centros de energia vital, já em adiantado processo de desintegração.
            Recomendou o Assistente que Luciana e Hipólito se mantivessem ao lado da senhora, modificando-lhe as vibrações mentais, e instruindo-me para coadjuvar-lhe a influenciação, como se fazia mister.
            Enquanto mantinha as mãos coladas ao cérebro de Dimas, propiciando-lhe a renovação das forças gerais, Jerônimo aplicava-lhe passes longitudinais, desfazendo os fios magnéticos que se entrecruzavam sobre o corpo abatido.
            (...) Pouco a pouco, com a interferência de Jerônimo, o amigo acalmou-se, respirou em ritmo quase normal, abriu os olhos fundos e exclamou, reconfortado:
            — Graças a Deus! Louvado seja Deus!
            (...) Dimas mostrou novo brilho no olhar, encarou a companheira, esforçando-se por parecer tranquilo, e rogou:
            — Querida, vá descansar!...Peço-lhe... Tantas noites a fio, de sentinela, acabarão por aniquilá-la. Que será de mim, doente e exausto, se o desânimo surpreender-nos a todos?
            (...) Cedendo às instâncias do esposo e docemente constrangida pela influência de Luciana e Hipólito, a matrona recolheu-se ao quarto.
            Em vista das melhoras obtidas, houve expansão de júbilo familiar. O médico foi chamado. Radiante, o clínico asseverou que os prognósticos contrariavam suposições anteriores. Renovou as indicações, dispensou os anestésicos e recomendou ao pessoal doméstico que entregasse o doente ao repouso absoluto. Dimas acusava melhoras surpreendentes. Era razoável, portanto, que a câmara fosse deixada em silêncio para que ele tivesse um sono reparador.
            O esculápio atendia-nos ao desejo.
            Em breves minutos, o compartimento ficou solitário, facilitando-nos o serviço.
            — Iniciaremos, agora, as operações decisivas, — declarou-nos Jerônimo, resoluto, — antes, porém, forneçamos ao nosso amigo a oportunidade da oração final.
            O Assistente tocou-o, demoradamente, na parte posterior do cérebro. Vimos que o agonizante passou a emitir pensamentos luminosos e belos. Não nos via, nem nos ouvia, de maneira direta, mas conservava a intuição clara e ativa. Sob o controle de Jerônimo, experimentou imperiosa necessidade de orar e, embora os lábios cansados prosseguissem imóveis, assinalamos a rogativa mental que endereçava ao Divino Mestre...
            (...) Ó providência maravilhosa do Céu! Convertera-se o coração do moribundo em foco radioso e a porta de acesso deu entrada a venerável anciã, coroada de luz semelhando neve luminosa. Ela se aproximou de Jerônimo e informou, após desejar-nos a paz divina:
            — Sou a mãe dele...
            O Assistente comentou a urgência da tarefa que nos aguardava e confiou-lhe o depósito querido. Em breves instantes, tínhamos perante os olhos inolvidável quadro afetivo.
            (...) Em virtude do reforço valioso no setor da colaboração, Hipólito e Luciana, atendendo ao nosso dirigente, foram velar pelo sono da esposa, para que as suas emissões mentais não nos alterassem o esforço.
            No recinto, permanecemos os três apenas.
            Dimas, experimentando indefinível bem-estar no regaço materno, parecia esquecer, agora, todas as mágoas, sentindo-se amparado como criança semi-inconsciente, quase feliz. Ordenou Jerônimo que me conservasse vigilante, de mãos coladas à fronte do enfermo, passando, logo após, ao serviço complexo e silencioso de magnetização.
            (...) Aconselhando-me cautela na ministração de energias magnéticas à mente do moribundo, começou a operar sobre o plexo solar, desatando laços que localizavam forças físicas. Com espanto, notei que substância leitosa, em regular quantidade, extravasava do umbigo, pairando em torno. Esticaram-se os membros inferiores, com sintomas de esfriamento.
            Dimas gemeu, em voz alta, semi-inconsciente.
            Acorreram amigos, assustados. Sacos de água quente foram-lhe apostos nos pés. Mas, antes que os familiares entrassem em cena, Jerônimo, com passes concentrados sobre o tórax, relaxou os elos que mantinham a coesão celular no centro emotivo, operando sobre determinado ponto do coração, que passou a funcionar como bomba mecânica, desreguladamente. Nova cota de substância desprendia-se do corpo, do epigastro à garganta, mas reparei que todos os músculos trabalhavam fortemente contra a partida da alma, opondo-se à libertação das forças motrizes, em esforço desesperado, ocasionando angustiosa aflição ao paciente. O campo físico oferecia-nos resistência, insistindo pela retenção do senhor espiritual.
            Com a fuga do pulso, foram chamados os parentes e o médico, que acorreram, pressurosos. No regaço maternal, todavia, e sob nossa influenciação direta, Dimas não conseguiu articular palavras ou concatenar raciocínios.
            Alcançáramos o coma, em boas condições.
            O Assistente estabeleceu reduzido tempo de descanso, mas volveu a intervir no cérebro. Era a última etapa.
            (...) Dimas-desencarnado elevou-se alguns palmos acima de Dimas-cadáver, apenas ligado ao corpo através de leve cordão prateado, semelhante a sutil elástico, entre o cérebro de matéria densa, abandonado, e o cérebro de matéria rarefeita do organismo liberto.
            A genitora abandonou o corpo grosseiro, rapidamente, e recolheu a nova forma, envolvendo-a em túnica de tecido muito branco, que trazia consigo.
            Para os nossos amigos encarnados, Dimas morrera, inteiramente. Para nós outros, porém, a operação era ainda incompleta. O Assistente deliberou que o cordão fluídico deveria permanecer até ao dia imediato, considerando as necessidades do “morto”, ainda imperfeitamente preparado para desenlace mais rápido.
            (...) E, enquanto o médico fornecia explicações técnicas aos parentes em pranto, Jerônimo convidou-nos à retirada, confiando, porém, o recém-desencarnado àquela que lhe fora desvelada mãezinha no mundo físico:
            — Minha irmã pode conservar o filho à vontade até amanhã, quando cortaremos o fio derradeiro que o liga aos despojos, antes de conduzi-lo a abrigo conveniente.  Por enquanto, repousará ele na contemplação do passado, que se lhe descortina em visão panorâmica no campo interior. Além disso, acusa debilidade extrema após o laborioso esforço do momento. Por essa razão, somente poderá partir, em nossa companhia, findo o enterramento dos envoltórios pesados, aos quais se une ainda pelos últimos resíduos.
            A anciã agradeceu com emoção e, dando a entender que lhe respondia às arguições mentais, o Assistente concluiu:
            — Convém montar guarda aqui, vigilante, para que os amigos apaixonados e os inimigos gratuitos não lhe perturbem o repouso forçado de algumas horas.
            A mãe de Dimas revelou-se muito grata e partimos, em grupo, a caminho da fundação de Fabiano, de onde nossa expedição socorrista regressaria à Crosta, no dia seguinte.
(Resumo do Cap. 13. " Companheiro libertado" da obra "Obreiros da vida eterna", ditada pelo Espírito André Luiz,  psicografada por Chico Xavier)

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